Arredores de Recife, 24 de dezembro de 1988
Acordei sobressaltada, como se alguém estivesse gritando nos meus ouvidos. Abri os olhos, o quarto estava escuro, nenhuma luz acesa e nenhuma barata voadora para atrapalhar o meu sono como normalmente acontecia e, portanto tinha acordado no meio da noite sem razão aparente, coisa rara para uma garota de 20 anos, aparentemente com saúde, e que tinha acabado o quinto semestre de jornalismo.
Logo pensei que talvez o fato de ter bebido algumas batidas de limão e de maracujá no bar do Caroço, no Rio das Pedras, ou o fato de ter fumado um baseado com um amigo nos Quintentos, antes de voltar para casa. Digo um, porque baseado não era a minha. Era mais chegada a uma bebidinha alcóolica, mas já estava acostumada com tudo aquilo e, eles nuncam tinham tirado o meu sono.
Tinha começado a beber bebidas alcóolicas aos treze. Primeiro foi a cachaça de cana com limão, que fazia na cozinha escondida da mãe; em seguida a mistura de wisky vagabundo com coca cola; depois o licor de genipapo na festas juninas, porém, cerveja nunca foi a minha. O àlcool era algo que meu organismo já conhecia muito bem, mas o baseado era novo. Experimentei-o pela primeira vez com esse amigo dos Quintetos há seis meses e, gostava da sensação que ele me proporcionava. De vez em quando ia na casa dele, que morava sozinho, para curtir uma diferente.
Deitada na cama, no escuro, tentava compreender o que estava sentindo. Era algo diferente, uma sensação que nunca tinha experimentado antes. Fiquei com mêdo do que estava acontecendo comigo, com o meu corpo e, de conhecer a verdade pois estava transpirando muito, coração acelerado como se tivesse corrido quilómetros sem parar, e como tivesse recebido uma notícia de falecimento de algum ente querido. Era uma sensação de tristeza, desespêro e ansiedade, era mais ou menos isso, o que estava sentindo.
Sentei-me na cama, enxuguei o suor com o lençol, tentei escutar todo barulho que a casa velha fazia, estava chovendo lá fôra e, dentro do meu quarto também, digo nosso quarto porque éramos 6 a dividir aquela merda.Tinha goteiras de todos os tamanhos e por todos os lados, mas aquele barulho eu já estava acostumada, sempre que chovia, era a mesma ladainha.
Naquela noite menos mal, porque o esgôto do quintal não entupiu e a àgua suja, não entrou quarto a dentro saindo pela sala ,como acontecia. O filho da puta do barulho que eu procurava, o miserável que tinha me acordado brutalmente e, me tirado do meu sono gostoso, tinha que encontrá-lo, custasse o que custasse.
Primeiro pensei que tivesse sido um barulho ocasionado por algum ladrão mal avisado, que entrara pensando que tinha algo para roubar naquela casa derrubada, mas logo pensei:
- Que ladrão seria louco, ao ponto de entrar naquela merda de casa velha e derrubada, que não tinha nada para roubar, talvez agredir as mulheres ou matá-las por puro prazer, depois de ter matado todos os homens da casa.
Podia escutar o velho piano da sala tocando sozinho, mas não sem a ajuda dos ratinhos calungas. Meu irmão o tinha achado na rua, fôra jogado fora por alguém e, achou bonito, a mãe nunca disse nada então ele foi ficando. Na verdade, ele era uma peça de decoração para nós, ninguém sabia tocar piano e ele estava completamente desafinado. Uma coisa era certa, ele servia de abrigo para os ratinhos, que não paravam de festejar.Também tinha os cachorros que latiam na rua, os carros que passavam, o ronco dos meus dois irmãos no quarto colado ao meu, mas e o tal do barulho que me acordou, nada.
De repente começei a sentir frio e uma dor muito forte no meu peito esquerdo, respirei ainda mais devagar e começei a massagear meu peito esquerdo, pensando que a dor passaria, mas que nada. Com a minha mão direita, massageava o coração cada vez mais forte e mais profundamente, sentindo-o bater na garganta, não podia estar morrendo de um ataque cardíaco, cara; Não podia acreditar naquilo, só tinha 20 anos, cara. Desde quando alguém com 20 anos morre de um ataque cardíaco? e ainda na véspera de Natal? estava sonhando, estava tendo um pesadelo acordada ,ou aquilo estava realmente acontecendo comigo?
Um monte de perguntas sem respostas, queria a minha mãe, a dor não passava, acendí a luz do quarto desesperada, não quis acordar a minha irmã mais velha que dormia como uma vaca, de qualquer jeito, a terra podia explodir que ela não acordaria, e as outras então nem pensar.
Queria minha mãe, só ela com toda a sua sabedoria de uma mulher ignorante, que nunca tinha alisado o banco da ciência, poderia me ajudar naquele momento. Um médico, sabia que ela chamaria um médico, desci do meu beliche apressada, nem tive tempo de calçar a sandália tamanha aflição, descalça, pés no cimento frio e molhado, fui correndo bater na porta do quarto dela. Batí na porta e chameia-a três vêzes somente. Ela abriu a porta preocupada e perguntou o que eu tinha. Falei que tinha acordado de repente e, que estava sentindo uma dor muito forte no peito esquerdo, suando frio e que meu coração estava batendo na garganta.
Ela, como toda a sua calma ,me abraçou e disse.
-Não chore filha, venha comigo até a cozinha que vou fazer um chá pra voce. Sei que deve estar estressada com a faculdade e, todos os nossos problemas de dinheiro; Não se preocupe, vamos dar um jeitinho para pagar as dívidas, Deus vai nos ajudar, não tem que se preocupar com problemas da casa, já tem muito que pensar com seus estudos.
-Mãe, acho que vou morrer, a dor não pára, não estou conseguindo respirar direito, estou gelada, minhas pernas estão tremendo. Mãe, chame um médico por favor, não quero chá, quero um médico mãe, por favor. Me leve para um hospital, faça alguma coisa mãe mas não me deixe morrer, por favor mãezinha. Estou com medo, por favor, não me deixe, por favor.
Enquanto falava, lhe abraçava muito forte, como se ela fôsse a minha única tábua de salvação. Ela era a minha única salvação, para mim ,não era importante o fato dela não ter estudado, não ter tido condições de ir para escola, ela era inteligente e sábia, não precisava de estudos para ensinar-me o valor da vida. Era minha mãe e, eu confiava nela e depositei todas a minha esperança de melhora nela.
Fui abraçada com ela até o velho fogão, ela acendeu uma fornalha, colocou uma panelina com agua para esquentar e com toda sua calma, colocou-me sentada numa cadeira perto do fogão e, ficou colada a ele esperando que a àgua esquentasse:
- Não tenha mêdo filha, a dor vai passar, onde já se viu uma pessoa de 20 anos morrer do coração, e ainda por cima na véspera de Natal? Isso não existe filha, voce é magra, saudável, nunca fica doente, fique tranquila e continue a respirar bem forte e,massagear o coração enquanto faço um chá de erva cidreira para voce.
Não podia controlar as lágrimas, a dor não passava. Desesperada levantei-me e fui abraça-la, pedi a ela para chamar meu irmão, para chamar um médico, implorei mas ela me levou de volta para a cadeira, deu-me uma taça de chá quente de erva cidreira , adoçou e disse-me para bebê-lo.
- Se amanhã voce ainda estiver com essa dor no peito, veremos um médico porque não pode ser normal.
- Mãezinha, quero ver um médico agora, amanhã pode ser muito tarde mãe.
- Voce não vai morrer filha, eu sou velha, eu posso morrer mas voce é jovem, essa dor vai passar voce vai ver. Ninguém morre de coração aos 20 anos, ninguém.
Como ela podia estar tão certa que eu não iria morrer do coração ? Não sei, mas acreditei nela e entre um gole e outro, bebí todo o chá de erva cidreira, na esperança que a dor passasse. Mas ela não passou. Sentada na cadeira, chamou-me para sentar-me no seu colo e me abraçou, consolou-me com palavras bonitas vindas do fundo do coração, que só uma mãe que ama seu filho, pode ter para dar.
Disse-me tantas coisas bonitas, que eu era jovem, que me casaria um dia e que teria filhos como ela e, que um dia, riria do que estava acontecendo naquele momento; que eu estava nervosa ou preocupada com algo.
Depois começou a rezar em voz alta e, pediu a Deus pela minha proteção, que ele me curasse e que tirasse a dor do meu peito, que me fazia tão mau. Não parou um só minuto de acariciar os meus cabelos, como se eu ainda fôsse uma criança, acho que foi toda a sua paciência, carinho que me fêz aceitar a morte, se era isso o que tivesse que acontecer.
Levantei-me do seu colo, caminhei em direção à porta da rua, abri-a e saí como estava.De camisola velha, pés descalços, cabelos despenteados e desesperada. Andava tropeçando como se os pés não me pertencesse mais. Como se fôsse uma pessoa idosa e doente de mais de 80 anos. Ofegando muito, sentindo-me as últimas das últimas e me perguntando porque Deus, na véspera de Natal tinha me dado um tal presente.
Talvez, se não fôsse a véspera de Natal ,eu teria aceito com resignação, mas o fato era que eu não podia aceitar, tinha imaginado o meu futuro, tinha planejado tantas coisas, e o meu casamento de vestido branco, grinalda e um lindo bouquê de flôres, e a minha formatura em jornalismo, e o homem da minha vida que eu nunca o conheceria. Pura ingratidão do destino: Será que eu merecia o que estava passando? não era bandida, nunca tinha matado ningúem, amava minha mãe e minha familia, amigos: O fato de adorar o alcool e fumar maconha de vez em quando, não podia ser pecado. Por quê eu? essa era a questão que não saia da minha cabeça e perguntava a Deus o tempo todo. Por quê eu ? já não bastava o fato de ser negra, pobre, morar numa casa velha, no subúrbio e batalhar para sobreviver num mundo de brancos, ainda tinha que sofrer de uma doença, que eu não era suposta a ter, ao menos aos 20 anos. Não era justo.
A revolta tomou conta de mim, se chorava era de revolta, porque não me importava mais com a dor, ela estava lá, não iria me matar, não imediatamente, mas teria que conviver com o fato que algo errado estava acontecendo ao meu corpo jovem.O que tinha ganho sendo uma garota normal, trabalhadora, que não dava trabalho a mãe, estudiosa, aplicada, estava revoltada e não podia conter-me. Queria gritar, berrar, xingar, matar, fazer tudo que nunca tinha feito antes, para finalmente merecer a punição que estava vivendo naquele momento.
Ví atrás de mim meu irmão que me seguia, alcançou-me e me segurou e me levou de volta para casa, disse que iria chamar um médico.
De volta em casa, deitei-me no sofá da sala tremendo de frio, minha mãe me cobriu com um lençol, e ai me dei conta que toda a casa estava acordada. Tinha virado uma atração.Todo mundo em volta de mim, olhava para a cara de cada um deles e via a expressão de piedade estampada nos seus olhos, a expressão de tristeza e de impotência, e a dor no meu peito que não passava.
Deitada no sofá, aceitei o meu destino e parei de massagear o meu peito esquerdo, se tivesse que morrer, morreria, se não, a minha sábia e ignorante mãe estaria com a razão. Esperei em vão que o médico chegasse, mas ele nunca chegou e, eu adormeci cansada, no sofá.
Ao amanhecer, a única lembrança do pesadelo que tinha me acordado na madrugada era que ele não me deixaria nunca, um pesadelo sem fim. Estava no sofá e não na minha cama, ele não tinha sido apenas um pesadelo que tentamos esquecer quando acordamos, ele seria eterno e não me abandonaria nunca mais, porque a dor no peito tinha acabado de começar de novo.
Deitada ali naquele sofá velho da sala, tudo veio à minha mente, a maneira como tinha sido acordada, sobressaltada, como se estivesse escutado vozes, tudo tinha sido um aviso. As vozes vinham do interior do meu corpo, era o meu corpo que falava e me alertava, foi ele quem tinha me acordado, o tal do miserável barulho não existia, o barulho que existia não era miserável mas era o doce batuque do meu coração descompassado pela dor, me alertando que algo estava errado comigo.
Era domingo de Natal, verão, dez horas da manhã, o sol brilhava na capital Recifense, enquanto muitos se preparavam para irem para a praia, eu e minha mãe estávamos no ponto do ônibus esperando o primeiro que passase para ir para o hospital mais próximo.
Uma hora depois chegávamos no hospital e,fomos até a recepção.Uma receptionista que não parava de fofocar com a sua colega não percebeu nossa chegada. Foi então que minha mãe replicou :
- Bom dia minha filha, gostaria de ver o médico de plantão.
- É para a senhora?
- Não, é para a minha filha.
- Se for problema de gravidez vou logo avisando que o médico plantonista não vai poder resolver.
- Não minha filha, não é problema de gravidez, é problema de coração.
- Coração? Ela já tem ficha aqui?
- Não, é a primeira vez que ela vem aqui.
- Então vou precisar fazer uma e enquanto isso a senhora espere na sala da frente que depois a enfermeira virá chamá-la.
Foram mais de duas horas de espera e finalmente a enfermeira chamou meu nome e ,fomos ver o tal do plantonista de Natal.
- Bom dia, é voce a paciente ? pode explicar o que está sentindo?
Depois de lhe dizer todos os sintomas da minha suposta doença, ele me examinou,chamou a enfermeira e disse que deveria fazer alguns exames, entre eles, um tal chamado de electrocardiograma. Já tinha ouvido falar daquele exame, mais pensava que somente pessoas idosas o fizessem.
Lá estava eu, numa sala cheia de gente, aparentemente todos esperando para passar o tal do exame e ninguém da minha idade, todos pareciam ter a idade da minha mãe, talvez mais velhos, me olhavam pensando que estivesse acompanhando a minha mãe.
Chegando a minha vez, deitei-me numa cama, peito nú, com fios colados nos meus seios, braços, e tornozelos e, todos ligados a um aparelho. As lágrimas mais uma vez começaram a rolar face a baixo, a enfermeira quis me consolar, dizendo que não era nada de grave mas que provavelmente o médico, me prescreveria algum medicamento.
De volta ao médico plantonista, ele examinou o resultado e disse que tinha uma arritimia cardíaca, e que deveria tomar remédio para tratamento e, depois com o resultado dos outros exames, viria se mudaria de tratamento ou se conservaria o mesmo.
Ele repetiu que tinha que começar a tomar o remédio imediatamente, deveria comprá-lo assim que saisse do hospital, e deveria voltar com os outros resultados dos exames, o mais rápido possível. Proibiu-me de beber bebidas alcóolicas, café e fazer exercícios físicos que exigissem muito esforço.Proibiu-me claro, de fumar baseados tambêm.
Saindo do hospital senti que uma nova vida começaria para mim, aquela que tinha vivido até sábado á noite antes das dores no peito começarem, tinha terminado. Uma outra vida, diferente, estaria começando para mim, o problema era aceitar aquela mudança radical de vida aos 20 anos de idade. Aceitar que todos os meus sonhos tinham ido pelos ares e ,que minha mãe estava certa, ainda não iria morrer do coração. Mas ela ,não sabia que na minha idade se podia sofrer do coração como qualquer pessoa idosa, e ai me disse mais uma vez, palavras bonitas para confortar a minha amargura :
- Não acreditei em nada do que ele disse minha filha, voce não está doente, até apenas nervosa e cansada dos estudos. Tome o remédio se quiser mais te digo que voce não precisa tomar essa porcaria de medicamento. Tem que sair mais, aproveitar as férias e se divertir e verá que as dores passarão. A sua mãe também tinha essas dores quando tinha sua idade e me veja hoje, casei, fiquei viúva, tive voces todos, oito filhos e nunca mais as dores voltaram.
Na farmácia ela perguntou ao rapaz que veio nos atender:
- O senhor já vendeu esse medicamento para alguém que tinha 20 anos?
- Não senhora, é a primeira vez.
- O senhor acredita que ela precise realmente de tomar esse remédio?
- Se foi o médico que passou, ela tem que tomar senhora, a doença não escolhe cara nem idade.
Saimos da farmácia e fomos em direção ao ponto do ônibus. O sol estava de lascar, um calor do inferno, um monte de gente feliz, rindo, contando piadas, e indo para a praia.
Era domingo, pleno verão em Recife e ainda por cima, era Natal.
Chegando em casa, fui direto tomar o remédio não sem antes ler toda a bula que me deprimiu ainda mais, deitei no sofá e logo toda a família se reuniu em torno de mim para saber o que estava acontecendo.
Foi a mãe quem contou, eu não disse nada,não queria falar apenas chorar e em cada lágrima derramada um sentimento de raiva misturado a um sentimento de agradecimento a Deus pelo presente de Natal, ao menos ainda estava viva e, por quanto tempo, só ele sabia.
Fiz todos os outros exames pedidos pelo médico plantonista e nada tinha mudado, teria que continuar o tratamento ainda por algum tempo, foi o que ele me disse para não me dizer para sempre. Disse-me também que poderia beber bebidas alcóolica mas muito pouco, não poderia abusar nem do alcool,nem do cigarro e nem do café. Exercícios físicos controlados e era tudo o que ele teve para me dizer. Tive que reaprender a viver,si quisesse viver um pouco mais, mas minha vida nunca mais seria como antes, nunca mais. Perdi toda a confiança em mim, me achava o resto do resto, a merda da merda, vivi para meus estudos e trabalho nada de vida pessoal, não queria dividir a minha dor com ninguém.
Meses depois, fui ver um pai de santo somente para saber o que ele me diria do meu futuro. Falou um monte de coisas, entre elas, que eu deixaria a minha cidade natal e ,começaria uma nova vida em uma outra cidade brasileira, mas nunca me disse se eu deixaria de tomar o tal do medicamento.
Dois anos depois, preparava duas malas pequenas e, dizia adeus a minha cidadezinha, a minha mãezinha, e ia rumo à cidade maravilhosa, Rio de Janeiro. No bolso, um diploma de 4 anos de estudos de jornalismo e, muita esperança. Vinte e quatro de dezembro de 1988, uma data que eu nunca esqueceria.
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Lene Machado
2002